11.17.2006

Capelões e Recalcados

Recalcamento

s. m.,
acto ou efeito de recalcar;

termo empregado por Freud, e muito utilizado em Psicologia, que significa o mecanismo de defesa pelo qual as ideias, as lembranças ou os sentimentos penosos são repelidos da consciência, podendo permanecer activos num plano inconsciente e originar comportamentos desadaptados;
censura.


Eu até sei que não vale a pena argumentar com teístas sobre qualquer questão que de alguma forma esteja relacionado com os seus sistemas de crenças ou os aparelhos que os suportam. A categoria de não-crente aparentemente invalida qualquer argumento que se utilize e no fim vêem os adjectivos.
Hoje por acaso dei com este post a propósito de capelões. Começo por dizer que concordo plenamente que toda a gente tenha acesso à assistência religiosa/espiritual que desejar, qualquer que seja a religião, onde que que seja e às horas que quiser.
O que não posso aceitar é que seja o Estado, que eu ajudo a sustentar, a pagar padres. A haver algum Estado a pagar que seja o Vaticano.
A comparação entre pessoal médico e religioso deixa-me impressionado e sem argumentos. Sem dúvida que o autor num momento em que tenha de escolher entre um médico ou um padre não terá dúvidas.
A questão do "sacerdote incutir bons princípios num criminoso" não é de todo politicamente incorrecta, é quase uma verdade histórica - Praticamente todos os grandes criminosos da história partilharam esses princípios e a igreja teve sempre o cuidado de se manter do lado do poder/razão, mesmo que os princípios tivessem que ser adaptados à situação.
Para finalizar parece que os capelões que estamos a pagar são 198, e se pudesse ser eu gostava de trocar a parte que me toca por uma resma de papel. Mas isto sou eu que sou recalcado e vivo em 1910.

12 comentários:

Gabriel Peregrino disse...

Tudo se resume a uma questão: os capelões (independentemente da crença) podem ajudar os doentes? Não tenho dúvidas que sim. E o senhor? Quanto ao argumento do financiamento, o mesmo se poderia dizer do aborto: os cidadãos que não concordam com o aborto têm o direito de impedir que os seus impostos sirvam para pagar esse tipo de operações? Ou os pacifistas poderão exigir que os seus impostos não sirvam para pagar a compra de armamento?

Gabriel Peregrino disse...

p.s.: e não fiz uma comparação entre um padre e um médico. Acho que ambos podem ajudar os doentes (os médicos mais, evidentemente). Quanto aos "grandes criminosos da História", que refere, não consta que Mao, Estaline, Kim Jong Il ou Pol Pot, por exemplo, fossem crentes de alguma religião. E não tenho dúvidas que, em alguns casos, a religião possa reabilitar criminosos.

JM Almeida disse...

Não tenho qualquer dúvida que pode ajudar, e talvez nem precise de vir de alguém associado a alguma crença, há momentos em que basta haver alguém disponível.

Mas o que também não dúvido, nem posso aceitar, é que não deve ser o estado suportar a prestação do apoio religioso, ainda mais quando falha nas que são as suas competências básicas.

Além disso temos este conceito de sacerdote/prestador de serviços, tinha ideia era obrigação da igreja dar apoio o espiritual aos seus fieis, pelos vistos algo mudou e do dar passaram a fornecer.

Existe muita coisa que não devia ser o estado a financiar, é pena que um conceito de objecção de consciência em matéria fiscal seja de difícil aplicação, mas sim podemos sempre discordar e exigir.

A questão de Mao, Estaline, Kim Jong Il ou Pol Pot terem ou não religião, depende um pouco do conceito de religião e do papel que se lhes queira atribuir dentro do sistema de crenças de cada um deles. Mas a lista não me parece muito exaustiva nem diversificada...

Do aborto deixe-me que lhe diga que na minha opinião não deve haver muita gente que concorde com o aborto e que o veja como uma coisa positiva e um comportamento a estimular, há é muita gente a querer passar essa ideia.

Gabriel Peregrino disse...

Deixe-me dar-lhe um exemplo: se um sacerdote for mais eficaz no apoio psicológico a um doente idoso, não será preferível pagar a um sacerdote e não a um psicólogo? Se o que importa é dar algum conforto aos doentes - e escusado será dizer que a esmagadora maioria dos doentes são idosos crentes, católicos ou não -, não será correcto que o Estado financie esse tipo de assistência (dentro do possível, claro)? Quanto à lista dos assassinos que referi, de facto não é muito diversificada. Mas engloba três dos quatro maiores facínoras da História (Pol Pot, Estaline e Mao). Pode ter a certeza que não foram sacerdotes que lhes incutiram tão bons princípios. (e escusa de referir Hitler: lá por ter sido baptizado em criança, não significa que fosse católico. Pelo contrário, escreveu que a "última missão" da Alemanha seria destruir o Vaticano, após a vitória sobre o "bolchevismo" e os Judeus)

JM Almeida disse...

Não sei o que será mais eficaz para ajudar os idosos crédulos, mas não posso concordar que seja o estado a financiar este tipo de assistência, e se existe a necessidade de ser financiada talvez queira dizer que não havendo dinheiro não há padre nenhum que ponha os pés num hospital.

Nem me estava a lembrar de Hitler, mas acaba por ser um bom exemplo do comportamento da igreja em relação às diversas categorias de facínoras. Temos o facínora comunista que é rejeitado à partida e deve ser combatido, o facínora não católico e não comunista (nesta categoria a abordagem é estudada caso a caso, uma espécie de realpolitik de batina) e o facínora católico que por norma é apoiado e retribui esse apoio.

Era a esta última categoria que me referia, não sendo católicos os outros estarão excluídos à partida (não deixando, no entanto, de ser facínoras e dos maiores se nos limitarmos à contagem de corpos), que inclui um conjunto de simpáticos regimes espalhados pela Europa e América do Sul, no qual se inclui também o nosso, e em todos os casos o apoio da igreja é inequívoco e invariavelmente nas fotografias de varanda aparece sempre pelo menos um padre. E para estes casos os bons princípios nunca impediram tortura, execuções sumárias, deportações. etc.

Não tinha ideia desta "última missão", e até estranho dado que as relações entre o Reich e o Vaticano após a concordata de 1933 passaram a ser bastante cordiais. Mas pelo visto as notícias da "última missão" não devem ter chegado ao Vaticano, senão como se pode explicar o comportamento do Vaticano durante a guerra? Sempre me pareceu que subjacente à neutralidade houve uma encoberta comunhão de interesses, a igreja não morre propriamente de amores por comunistas e judeus.

À parte disso o regime nazi teve também um fundo religioso, que não pode ser negado, a questão judaica (que não me parece possa ser reduzida à sua componente étnica), o gosto pelo ritual, a apropriação da simbologia da ordem teutónica, etc.

Dina Almeida disse...

Ah! Sou mesmo ingénua e eu a pensar que quando prestava assistência a Igreja estava a ajudar os pobrezinhos e os coitadinhos... Afinal, não... está só a prestar um serviço... E até gostava de ver a factura que passa ao Estado... Será "xtrema unxão ao xr. manuel da enxada --- 300?"?

Gabriel Peregrino disse...

1. É justo que um sacerdote tenha um ordenado, para que possa prover ao seu sustento. Os médicos também desempenham uma "missão" - e no seu juramento, comprometem-se a nunca negar ajuda a alguém, tal como os padres -, e nem por isso devem deixar de receber o seu ordenado. 2. Volto a repetir: o objectivo do sistema de saúde é ajudar à recuperação dos doentes, ou pelo menos minorar o seu sofrimento. Se a existencia de um padre ou de um rabi num hospital ajudar à recuperação dos doentes ou a dar-lhes maior conforto, não me importo que o dinheiro dos meus impostos reverta para pagar o seu ordenado. Perguntem aos doentes o que eles acham! 3. Existe uma grande diferença entre um Estado agnóstico e um Estado ateu. Creio que ainda vivemos no primeiro. Logo, não é ao Estado que cabe classificar os idosos doentes como "crédulos", mas sim como crentes. 4. O Nazismo é uma ideologia pagã e anti-cristã (aliás, esta era uma das razões que fazia com que Salazar não gostasse do nazismo ou do fascismo italiano). E as relações entre o Vaticano e o III Reich não foram tão cordiais como quer dar a entender. Da mesma forma, nem todos os católicos apoiaram os regimes de extrema direita que durante anos governaram o Sul da Europa e a América Latina (o meu avô, por exemplo, era católico praticante e fazia parte da candidatura do Gen. Delgado). Da mesma forma que nem todos os intelectuais europeus apoiaram ou desculparam a União Soviética e a China de Mao durante décadas (e muitos dos que o fizeram ainda hoje ostentam uma desavergonhada superioridade moral).

JM Almeida disse...

1. Concordo plenamente que um sacerdote tenha o seu ordenado, mas como acontece com todos os outros esse ordenado deve ser pago pela entidade para quem ele trabalha, que no caso é a igreja católica.
2. É uma visão bastante abrangente do que deve ser o sistema de saúde, mas parece-me também que só poderia ser justa se fosse universal o que podia implicar termos nos hospitais além dos sacerdotes e rabis, uma quantidade de pastores das mais variadas procedências, bruxos, curandeiros e o mais que os doentes pudessem necessitar como paliativo. Talvez não fosse a melhor abordagem...
3. Eu já ficava contente com um estado agnóstico.
4. A única coisa que ponho realmente em questão é a neutralidade da igreja face aos princípios dessa mesma igreja. Quanto a Salazar, podia até nem simpatizar com Hitler e Mussolini, mas usou-os como modelo (sobretudo a Mussolini) e manteve uma proveitosa neutralidade que lhe garantiu manter o comércio com as duas partes quase até ao fim da guerra.
Em relação ao apoio a ditaduras não referi vez alguma que todos os católicos as apoiavam. Sei que sempre existiram excepções, casos de resistência, que merecem respeito e admiração. A minha crítica vai para a instituição, não para a religião, nem para os crentes (essa é uma opção pessoal que aceito embora possa não compreender).
E foi justamente em relação à instituição que não conseguiu contrapor argumentos. Parece-me claro que, olhando apenas para o século XX que o comportamento do Vaticano foi regido por tudo menos pelos princípios éticos e morais que constantemente apregoam.

Dina Almeida disse...

Resumindo e concluindo: com o dinheiro dos outros, tb eu compro muita coisa...

Gabriel Peregrino disse...

1. O sacerdote está a prestar um serviço a doentes cujo tratamento - não apenas das maleitas "físicas" - é da responsabilidade do Estado. Um padre que tem uma paróquia é pago por aqueles a quem serve, i.e., os paroquianos. Um padre que presta serviço num hospital dificilmente poderia ser pago pelos doentes (que em muitos casos nem têm posses para pagar os medicamentos). Esse argumento de "fazer muita coisa com o dinheiro dos outros" é profundamente demagógico: por essa lógica, os cidadãos que não concordam com o aborto deveriam ter o direito a não financiarem, com o dinheiro dos seus impostos, a realização de abortos em hospitais públicos. E o mesmo se poderia dizer da existência das forças armadas, dos subsídios à cultura, das salas de chuto, etc, etc. 2.

2. Compreendo que, para um ateu, uma religião seja exactamente igual a superstição, e daí a comparação com os bruxos e curandeiros. Felizmente, 90% dos portugueses não pensam de igual modo.

3. Pelos seus escritos, parece-me que o que o senhor quer não é um Estado agnóstico, mas sim um Estado ateu. O senhor respeita tanto a liberdade religiosa dos outros como aqueles que, na minha Igreja, entendem que o Estado deve ser católico.

4. De Mussolini, Salazar apenas "copiou" a organização corporativa do Estado. Quer o fascismo italiano, quer o nazismo alemão, eram regimes neo-pagãos, pensados para sociedades industriais. Ou seja, tudo o que Salazar não queria para Portugal. E sim, houve gente na Igreja que apoiou ditaduras (inclusivé as de Esquerda, em alguns casos). Da mesma forma que muita intelectualidade iluminada apoiou, durante décadas, a União Soviética ou a China de Mao (e muitos desses intelectuais ainda andam por aí, com ares de superioridade moral). Mas caramba, erros todos cometemos. E a diplomacia do Vaticano errou em muita coisa, com certeza, porque a Igreja é feita de homens. Mas recordo alguns pontos muito positivos que costumam escapar à memória selectiva dos anti-clericais, como o papel da Igreja nas duas guerras mundiais. No caso da Segunda Guerra, o Papa Pio XII salvou milhares de judeus italianos da morte certa (foi o próprio líder da comunidade judaica de Roma que o garantiu). E em toda a Europa a Igreja salvou judeus perseguidos, da França à Polónia. Se o Papa condenasse abertamente o nazismo, a Igreja seria destruída, milhões de vidas se perderiam... e nada se ganharia com isso.

5. Em conclusão, parece-me que muita gente simplestemente detesta a Igreja, por um conjunto de razões: a Igreja é portadora de uma mensagem incómoda. Sempre foi e sempre assim será (o próprio Cristo assumiu-se como a "pedra de tropeço"). Outra razão é o facto de a Igreja ser ainda hoje bastante poderosa. Por fim, e talvez mais importante, a maior parte das pessoas que odeiam o catolicismo desconhecem por completo aquilo que odeiam. Há mais ignorância que outra coisa.

JM Almeida disse...

Parece-me essa imagem de Portugal como um país profundamente católico, está bastante desajustada da realidade, não se trata de fé, trata-se sim de inércia. É bem possível que 90% dos digam que são católicos, mas são católicos como podiam ser outra coisa. E pensando bem, possivelmente até eu estou nesses 90% já que sou baptizado, tive educação religiosa e até fiz a comunhão.

Infelizmente o que se passa é que há muito pouca gente que tenha alguma vez parado para pensar no que é e porquê.

Possivelmente o que se passa é que teremos conceitos diferentes do que seja a liberdade religiosa, na minha perspectiva não vejo de que forma é que essa liberdade possa ser de alguma forma beliscada pelo facto do Estado deixar de pagar serviços religiosos (sobretudo quando os paga apenas a uma religião).

O facto de não acreditar em divindades não me impede de defender que cada pessoa acredite ou não no que bem entender, simplesmente o que não posso ver como aceitável é que seja utilizados meios públicos para fins confessionais. E só o facto de isto poder acontecer parece-me um indicador de que o estado está longe de ser agnóstico.

Dizer que a "Igreja é feita de homens" não é sequer um argumento, é simplesmente uma boa desculpa para tudo, podemos dizer que o III Reich foi feito de homens, o estado novo foi feito de homens, o regime soviético foi feito de homens, a inquisição foi feita de homens, e por aí adiante, ou seja, foram cometidos alguns erros mas tirando isso tudo bem...

Parece que há sempre uma tendência para a vitimização e mania de perseguição que não existe. E este é um ponto que existe em comum entre religiões e totalitarismos de toda a espécie, nada pode ser questionado, porque aparentemente discordar é atacar.

Não deixo de assumir que sou ignorante, numas coisas mais do que em outras, mas felizmente ainda não a considero uma virtude. E é provavelmente por isso que tenho alguma dificuldade em entender de que forma é a mensagem da igreja incómoda e para quem?

Gabriel Peregrino disse...

Portugal é ainda um país católico, nem que seja, como disse, por "inércia". Inércia essa que se deve também ao facto de a nossa cultura ser muito influenciada pelo catolicismo. Além disso, julgo não ser necessário um grande estudo sociológico para perceber que a maioria dos idosos são crentes e que a maioria dos doentes são idosos. Quanto ao conceito de liberdade religiosa, não creio que o facto de o Estado reconhecer e apoiar, na medida do possível e do bom senso, a actividade das diferentes religiões possa impedir a liberdade religiosa e a escolha livre de cada cidadão. Da mesma forma que não vejo problemas em o Estado apoiar a actividade de organizações de ateus ou agnósticos. Da mesma forma que apoia escolas de música, clubes desportivos, grupos de artistas, associações académicas e outros organismos. Em relação à mensagem incómoda da Igreja - isto é, a mensagem de Cristo -, creio que nunca foi mais incómoda do que nos dias de hoje: humildade, castidade, amor e entrega ao próximo, primado do espiritual sobre o material, fé num Deus criador que rege o destino do Universo. Mais incómodo que isto não pode haver, para a nossa sociedade consumista, hedonista, materialista e "racionalista" (as aspas têm aqui uma razão de ser).